Rosiska Darcy
O aluno que inseriu na redação do Enem a receita do miojo deixou um recado claro: a receita de escola desandou.
No passado a escola era um espaço físico, dedicado à aquisição de conhecimentos certificáveis, que só os professores detinham. O professor era um profissional supostamente capaz de saber o quê e como ensinar. Os ritmos escolares balizavam o tempo desse aprendizado que se sucedia ao longo de anos. Todas essas premissas estão postas em questão.
Enquanto a escola pública tenta compensar suas imensas deficiências construindo prédios, aumentando matrículas e o número de professores em sala de aula, condição sine qua non de qualquer progresso, o que se passa dentro dos muros da escola entre alunos e professores é desolador. O episódio da receita do miojo, temperada com pitadas de deboche e altas doses de descrença, é testemunha desse descalabro.
Uma mudança de era deu lugar a um abismo geracional que separa professores e alunos, minando as relações de admiração e respeito que, no passado, estimulavam o desejo de aprender. Os professores estão hoje a cavaleiro entre dois tempos; um passado em que conteúdos eram transmitidos de uma forma que hoje chamaríamos tradicional; um presente em que os alunos, digitais nativos habitam, fascinados, o espaço virtual como vida real e são habilíssimos em tecnologias que os professores mal dominam.
Quando todos os alunos frequentarem as aulas, quando houver professores suficientes, recebendo um salário decente, ainda restará a incômoda questão do que lhes ensinar. Um livro de respeitáveis pesquisadores franceses ostenta o título inquietante: “Ainda é preciso aprender?”.
A virtualidade é o meio ambiente de uma juventude portadora dessas próteses cerebrais que são os celulares, prolongamentos de seus corpos, onde trazem armazenada — Google dispensando o trabalho da memória — toda a informação do mundo. Fotografam tudo que se passa como que deixando provas tangíveis do que é vivido em tempo real, marcando o instante, sem apelo à abstração da memória, seus caprichos e brumas. Como tudo é registrado sem esforço, é o próprio esforço que se torna um comportamento raro e desvalorizado, o que representa um perigoso efeito colateral. Entre alunos e professores há distância e estranhamento. Por vezes, agressividade.
A pletora de informações que cada um acessa quando tira o celular do bolso não implica que os jovens tenham a mínima ideia do que fazer com elas ou, pior, que saibam a diferença entre informação e conhecimento. A aquisição de conhecimento depende do desenvolvimento de aptidões mentais e do domínio dos códigos culturais que permitem navegar com alguma coerência em um oceano de informações desgarradas. As informações disponíveis na internet são um tesouro literalmente incomensurável. Problemática é a exígua capacidade de processá-las e lhes dar algum sentido.
Assim como a palavra ganha seu sentido no texto e o texto ganha sentido em um contexto, a informação pede para se inserir em um patrimônio cultural que caberia à escola transmitir. A contextualização é condição da função cognitiva ao mesmo título que a consciência de ter aprendido, tão cara ao grande Jean Piaget.
É a transmissão do patrimônio cultural e de valores que dão à juventude o sentido de pertencimento à aventura humana e estabelecem os vínculos de continuidade entre as gerações que se sucedem. Tarefa essencial em tempos moldados e irrigados pela tecnologia que permite a cada um construir um mundo próprio — o que pode ser uma rica experiência se conectada a um pertencimento mais amplo —, mas pode ser também o deslizamento para uma forma velada de antissociedade, um aglomerado de indivíduos autorreferentes cuja comunicação não passa por uma experiência ou memória comum e se tece apenas com os laços esgarçáveis da banalidade.
O desafio da educação é a formação de indivíduos aptos a pensar pela própria cabeça, capazes de transformar informações em conhecimentos, abertos à inovação e experimentação, afeitos à argumentação e escolha. O que Edgar Morin chama “uma cabeça bem feita”.
A vida em tempos de internet exige da escola uma metadisciplina, o aprender a aprender. Quem serão os professores dessa escola aberta ao desconhecido, sob forma de pesquisa, e ao inesperado, sob forma de criação?
Não há receita pronta de escola e sim ingredientes a combinar: a aquisição de conteúdos específicos com o aprendizado de competências transversais que permitam aos jovens dar sentido a si mesmos e a um mundo em que terão vida longa e as certezas curta vida.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Publicado originalmente no
jornal O Globo – 30/03/201