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Publicado em 02 de junho de 2015 | 14 minutos de leitura

“A escola perdeu a cara de escola

No final do ano passado, João Batista Oliveira, PhD em Educação e presidente do Instituto Alfa e Beto, lançou o livro “Repensando a Educação Brasileira – O que fazer para transformar nossas escolas”. A obra, publicada pela Salta, propõe um debate sobre a realidade de nossa educação e sobre a criação de um projeto educacional adequado às escolas.

Para o autor, há muitos desafios a serem enfrentados. Um deles é o papel da escola no mundo atual.  “A escola, ao tentar se ajustar à sociedade, está perdendo sua razão de ser, e, com isso, perde sua autoridade e sua capacidade de transformar os jovens: a escola perdeu a cara de escola”, afirma.

Nesta entrevista, João Batista critica nosso modelo de Ensino Médio – que classifica como um “exterminador do futuro dos jovens” –, e também o que chama de “vitimização” do professor.  “Professor não é coitadinho nem vítima de nada. Coitadinho é o brasileiro. Estudos realizados em diferentes décadas mostram que, de modo geral, os salários dos professores são semelhantes aos de outras pessoas com níveis similares”.  Ele fala, ainda, sobre gestão, política e a participação da família na educação, entre outros assuntos.

  O seu livro tem como título “Repensando a Educação Brasileira – O que fazer para transformar nossas escolas”. Então, o que é preciso para mudar nossa Educação?

João Batista – Do lado da sociedade, é preciso criar um consenso a respeito do que seja a escola, para que serve, o que esperar dela. Daí deriva o respeito que pais e alunos devem ter em relação ao conhecimento, ao estudo, ao valor do esforço, ao respeito aos diretores e professores.  Esse consenso foi perdido e sem ele é difícil avançar. Hoje, a escola é chamada para tudo, mas raramente para ensinar e mostrar resultados acadêmicos. Do lado do governo, é necessário estabelecer políticas consistentes e de longo prazo, e não remendos e programas de curta duração, como vêm ocorrendo. É preciso haver políticas para implementar os fundamentos de um sistema educativo: divisão clara de responsabilidades entre os três níveis de governo, organização do sistema escolar, financiamento, gestão, currículos, avaliação e, claro, uma política abrangente e de longo prazo que permita atrair e manter no magistério jovens talentosos.

Quais são suas principais críticas à gestão educacional do Brasil? 

       Há três planos para considerar. O primeiro refere-se aos condicionantes para que uma gestão seja eficaz.  Nesse plano mais geral, temos uma confusão e superposição de funções entre os governos federal, estaduais e municipais que impede uma gestão eficiente e eficaz. No plano intermediário, temos políticas e práticas que tornam ineficazes as ações das secretarias de Educação – elas não são estruturadas para fazer as escolas funcionarem e, frequentemente, por ação mais que por omissão, concorrem para que isso efetivamente não ocorra. No plano da escola, temos inúmeros problemas que impedem a ação eficaz dos responsáveis pela gestão administrativa e pedagógica das escolas, o mais importante deles é a falta de preparo, de legitimidade e de autoridade.

É possível destacar acertos ou pontos positivos de nosso modelo? Quais seriam?

      Tenho dificuldade em encontrar pontos positivos, pois os resultados da educação, em geral, especialmente os da educação pública, são muito ruins. E os resultados para aqueles que mais precisam da educação para melhorar de vida, que são os mais pobres, são piores ainda. O que há de meritório aqui e ali são tentativas de remendar os buracos existentes com medidas mais acertadas. Por exemplo, há municípios que alfabetizam seus alunos aos seis anos de idade, o que é uma medida fundamental. Há municípios que adotam estratégias adequadas para sanar as deficiências de formação básica de seus professores – como, por exemplo, no caso do ensino estruturado. Há redes de ensino que possuem programas de ensino que servem de ponto de partida para as demais ações, especialmente para a escolha de materiais didáticos e avaliação. Mas são medidas isoladas. Não conheço nenhuma rede de ensino, no Brasil, que tenha políticas adequadas para atrair e manter jovens talentosos no magistério. E enquanto isso não acontecer, não teremos condições de promover uma educação de qualidade, para todos, e, especialmente, para os que mais precisam dela.

Recentemente, foi divulgado o resultado do Enem. Ele ficou abaixo da expectativa do MEC. Por que não conseguimos avançar na qualidade?

      Os resultados do Enem só ficaram abaixo da expectativa de quem é mal informado. Quem acompanha a evolução da Educação no Brasil sabe que o Ensino Médio só irá começar a melhorar depois que resolvermos os problemas do Ensino Fundamental – e por enquanto sequer asseguramos a alfabetização das crianças no 1° ano.  Além disso, o Ensino Médio que temos é inviável, por impor uma única forma de escola e um único currículo para todos. Em todos os países onde a educação dá certo o Ensino Médio é diversificado, isto é, há diferentes instituições que oferecem diferentes modalidades de Ensino Médio – profissional ou acadêmico. E dentro das instituições há alguma margem de escolha pelos alunos. O modelo do Brasil é inviável. Mas, ainda que fosse viável, faltariam alunos qualificados. Menos de 20% dos concluintes do 9° ano dominam os conteúdos básicos dessa etapa.

Como o senhor avalia o currículo do Ensino Médio? Acredita que há um excesso de disciplinas?

      O problema não é o currículo, e sim a estrutura mais geral que não prevê uma pluralidade de ensinos médios. No Brasil, todos os alunos são obrigados a fazer o que se convencionou chamar de “educação geral”, confundida com um determinado número de disciplinas. O ensino profissional e a formação técnica são desvalorizados. O resultado é que 50% dos que entram nesse Ensino Médio não o concluem. E só pode fazer ensino profissional quem concluiu o Ensino Médio. O Ensino Médio, tal como concebido no Brasil, é o exterminador do futuro.

Com relação à Educação Infantil, o senhor acha que avançamos? Como avalia a qualidade do setor?

      O Brasil optou por um modelo de educação que só privilegia a quantidade: mais vagas, mais disciplinas, mais tempo na escola, mais professores, mais recursos. Em menos de vinte anos, praticamente universalizamos o acesso à pré-escola – e isso não resultou em avanço significativo nem nas séries iniciais. Já temos quase 25% das crianças em creches – mas a maneira como são concebidas, financiadas e operadas não permitirá oferecer uma experiência educacional que mude as chances de sucesso escolar das camadas mais necessitadas da população. E com toda essa expansão não cuidamos de formar educadores adequados para cuidar das crianças, nem de fomentar e viabilizar estratégias alternativas de atendimento à Primeira Infância. A política oficial é: fora da creche não há salvação!  E dentro dela…

Qual o papel dos pais na formação dos jovens? Será que o baixo desempenho é resultado apenas das mazelas provocadas por má gestão, falta de estrutura física e falta de bons professores?

       A família é o fator mais importante na formação da personalidade, do caráter e dos fatores relacionados com o sucesso na vida e na escola.  Embora o fator intelectual seja muito relevante para o sucesso escolar, os fatores não cognitivos, especialmente o valor associado ao esforço e à autodisciplina, são igualmente importantes, e esses são mais relacionados com os valores da família do que com o seu nível econômico ou sociocultural.  Na sociedade pós-moderna, a família foi uma das primeiras instituições sociais a começar a se desagregar, e isso se reflete, por exemplo, na forma como as famílias, as crianças e os jovens percebem a importância e a função do conhecimento e da escola. Por seu lado, a escola, ao tentar se ajustar à sociedade, está perdendo sua razão de ser, e, com isso, perde sua autoridade e sua capacidade de transformar os jovens: a escola perdeu a cara de escola.  É um círculo vicioso que precisa ser rompido em algum lugar.  No contexto brasileiro atual, parece mais plausível que a escola tente resgatar a sua função e passe a comportar-se como escola – e assim reconquiste o prestígio e autoridade necessários para cumprir sua função.

Como lidar com a situação provocada pelo ingresso das mães no mundo do trabalho?

       O ingresso das mães no mercado de trabalho é uma consequência inevitável do que convencionamos chamar de progresso econômico e conquistas sociais.  Isso veio para ficar. Nos países mais ricos do mundo, os governos criam mecanismos para que os pais fiquem mais tempo com seus filhos, especialmente nos primeiros anos de vida. Se eles fazem isso porque são ricos ou são ricos porque fazem isso não sabemos, mas tudo indica que é uma boa ideia. Tudo que a moderna ciência do desenvolvimento humano e infantil preconiza para uma boa educação infantil é muito daquilo que sempre fizeram as boas mães e as boas famílias. Para reverter a situação das famílias, inclusive a das mães que não trabalham, é preciso desenvolver mecanismos diferenciados de atendimento às famílias com crianças pequenas, especialmente prover atendimento de alta qualidade para as crianças dos lares mais carentes. Ou seja: fazer o contrário do que preconizam as políticas em curso. E é preciso desescolarizar a educação infantil antes que seja tarde.

É preciso melhorar a qualificação dos professores? Como valorizar esse profissional?

      A meu ver, alguns sindicatos de professores, no Brasil, vêm contribuindo para desvalorizar a profissão de professor. Chamar os professores de “trabalhadores da educação” é um exemplo disso – não é nenhuma vergonha ser trabalhador, mas professores são profissionais e deveriam deixar isso bem claro para a sociedade.  Outro estrago é vitimizar o professor, chamar o professor de coitadinho. Professor não é coitadinho nem vítima de nada. Coitadinho é o brasileiro. Estudos realizados em diferentes décadas mostram que de modo geral os salários dos professores são semelhantes aos de outras pessoas com níveis similares – se levarmos em conta o desempenho acadêmico, duração de cursos e horário efetivo de trabalho. Para valorizar os professores é necessário recomeçar do zero. Primeiro é preciso redescobrir a função da escola. Se essa função for a de ensinar, então se cria espaço para valorizar o ensino, e as pessoas que ensinam. Se o conhecimento é valorizado, quem detém o conhecimento e o domínio profissional das disciplinas e das ferramentas para ensinar será valorizado por esse fato, e comandará respeito e autoridade.  O resto vem daí. 

Que fatores influenciam o bom rendimento de um aluno?

      O primeiro é o esforço pessoal e a crença do aluno e de seus pais e familiares de que o aluno tem capacidade e será capaz de superar os desafios da escola se dedicar-se com seriedade aos estudos, praticando bons hábitos.  O segundo é a oportunidade de estudar e aprender em boas escolas e com bons professores.  O terceiro é estar num ambiente escolar que valoriza a disciplina, o estudo e o conhecimento, e estimula o respeito aos professores, diretores e ao próprio conhecimento.

O que podem fazer pais, professores e gestores para minimizar as deficiências provocadas pelas diferenças sociais?

      Os pais podem interagir com as crianças desde cedo, conversando, lendo e estimulando sua curiosidade para conhecer e interagir com as pessoas e com o mundo. Professores ajudam quando desenvolvem expectativas altas e realistas a respeito de seus alunos, e os estimulam com desafios que sejam capazes de atingir e superar. Gestores ajudam criando um clima propício ao trabalho acadêmico nas escolas. 

E qual o papel da sociedade na busca por uma educação de qualidade?

      Voltamos ao ponto de partida da sua primeira pergunta: precisamos recriar uma cultura da escola, uma cultura que valorize o conhecimento acumulado pelas gerações que nos precederam, a busca do conhecimento como instrumento para situar-se no mundo e modificá-lo de forma responsável, uma cultura que valorize a autoridade de quem detém o conhecimento e que é capaz de estimular as crianças e jovens nessa aventura de desvendar e transformar o mundo – se possível, para melhor. 


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