O governo federal acaba de receber cerca de 3,4 milhões de inscrições de quase 1,7 milhão de candidatos para as pouco mais de 100 mil vagas no ensino superior (SISU). Em média, 30 candidatos disputam cada uma das vagas. Trata-se do maior vestibular do país, e sua forma de organização poderia sugerir um grande avanço no sentido de os alunos serem poupados das gincanas dos múltiplos vestibulares. Mas tal processo seletivo constitui, de fato, um enorme monstrengo educacional, uma anomalia que se aproxima de uma espécie de loteria. Algumas razões para tal afirmação são apresentadas a seguir.
O primeiro sintoma de anomalia é o fato de que o ENEM é o instrumento de avaliação utilizado na disputa das vagas. Mesmo quando realizado de modo absolutamente consistente, sem os desvios logísticos e conceituais que o têm acompanhado nas últimas realizações, o ENEM não foi projetado como um processo seletivo, não é adequado para classificações finas, como as que ocorrem nos vestibulares. Poderia até ser utilizado como um indicador, entre outros instrumentos, nunca como o elemento decisivo para a aprovação. Tampouco o ENEM se presta à elaboração de rankings: no máximo, as notas em tais avaliações poderiam servir de base para a classificação das mais de 20 mil escolas avaliadas em 4 ou 5 faixas, tal como se faz com as estrelas dos hotéis.
Os maiores desvios decorrem, no entanto, do modo atabalhoado como o ENEM tem sido realizado. Problemas logísticos como roubo de provas, quebras de sigilo, inadequações na pré testagem e nas dimensões dos bancos de itens têm se sucedido, ano a ano, minando a integridade e a credibilidade imprescindíveis a um instrumento de avaliação. Além disso, há questões estruturais referentes às provas. Ao passar de uma prova de 63 questões para 4 provas, uma para cada área em que se organiza o Ensino Médio, com 45 questões cada uma, a prova tornou-se excessivamente longa para o conteúdo que examina, e ocorreu um desbalanceamento, com uma super valorização da prova de redação. Tal problema tem sido amplificado pelo fato de as incertezas nos critérios de correção de tal prova terem sido levadas aos tribunais competentes e estarem, hoje, no centro das discussões.
Há outras questões conceituais que eivam o processo de elaboração do ENEM: a premissa de que as questões das provas devem ser “contextualizadas” é uma delas. Em muitos dos itens da prova, a palavra “contexto” é tratada como se significasse uma abreviatura de “com muito texto”. Os enunciados tornam-se desnecessariamente longos, levando alguns professores a conselhos excêntricos: sugerem que os alunos não leiam os enunciados logo de início, indo diretamente à pergunta feita, e garantem que, na maioria das vezes, a resposta correta pode ser indicada, sem perda de tempo.
Outro desvio conceitual mais sutil é a interpretação da contextualização como filtro ideológico primário: de modo defensivo, quase cínico, os alunos “aprendem” e divulgam regrinhas do “politicamente correto”, referentes, sobretudo, a questões ambientais, ou aos direitos humanos tais como definidos em catecismos partidários.
O mais grave dos desvios, no entanto, é a pretensão de utilização de uma sofisticada Teoria da Resposta ao Item (TRI) na correção das provas: as limitações na qualidade e na quantidade dos itens dos bancos de questões minam qualquer possibilidade de sucesso no recurso a tal parafernália matemática. Objetivamente, o que se conseguiu foi a transformação da correção da prova em uma verdadeira loteria. Ninguém sabe, ao certo, quantos pontos vai obter: aos alunos, cabe fazer o exame e torcer ou rezar por uma boa sorte.
O mais notável em todos esses desacertos é a recepção passiva dos resultados do ENEM como um tipo legítimo de credenciamento pela maior parte das escolas. Já passou da hora de as boas escolas privadas manifestarem seu desapreço pela irracionalidade dos rankings, da forma como são realizados, e sobretudo, pela grande loteria que se tornou o resultado de um processo de avaliação no qual foram depositadas tantas e tão justas expectativas. Não se trata de diminuir a importância das avaliações externas, mas de recebê-las criticamente. Afinal, as políticas públicas na área da educação precisam atender aos interesses da nação, e não aos dos governantes de plantão.
Nílson José Machado é Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Publicado em versão mais reduzida na Folha de São Paulo em 17/01/2012