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Publicado em 21 de setembro de 2016 | 11 minutos de leitura

A revolução no ensino se impõe pelas crianças”, diz António Nóvoa

Fonte: Portal do Jornal  O Globo – 21/9/2016

RIO — Autor de diversos livros e artigos sobre o ensino, o português António Nóvoa vê nas universidades brasileiras um compromisso reduzido com formação de professores para a educação básica. Por conta disso, o sociólogo defende a criação de um “lugar institucional que assuma a responsabilidade de formar professores”. O educador vai fazer uma das quatro conferências magnas do encontro Educação 360, que será realizado, de sexta-feira a sábado, pelos jornais O GLOBO e “Extra”, em parceria com o Sesc e a Prefeitura do Rio e apoio da Coca-Cola Brasil, da TV Globo e do Canal Futura, na Escola Sesc de Ensino Médio, em Jacarepaguá. As inscrições estão abertas e podem ser feitas por meio do site Educacao360.com.

Qual é o problema central na formação do docente?

O Brasil tem um sistema de formação de professores que precisa de alterações profundas. Por um lado, há um conjunto de boas universidades, sobretudo públicas, mas que não têm assumido um compromisso forte com a educação básica. Nelas, a formação de professores está muito fragmentada, entre diversas licenciaturas, lecionadas em diferentes institutos e faculdades, tornando impossível dar uma coerência à formação docente. Por outro lado, há uma realidade muito problemática que é a forma como se multiplicaram instituições privadas que, apesar de notáveis exceções, têm pouca qualidade e recorrem de forma muito generalizada, e medíocre, a cursos de educação a distância. Não é este o caminho para qualificar os professores e para dignificar a profissão docente.

Como resolver?

Venho advogando a necessidade da criação de um “lugar institucional”, dentro das universidades, que assuma a responsabilidade de formar os professores. Neste “lugar” deve haver também uma forte presença das escolas e dos professores, permitindo que os estudantes das licenciaturas se socializem profissionalmente desde o primeiro ano, isto é, eles vão adquirindo uma cultura profissional docente.

Qual é a proposta do senhor para a formação continuada?

A formação continuada não se faz através de cursos, de seminários ou de palestras nos quais os professores são bombardeados com todo o tipo de fastfood, de receitas, de modas. Esses eventos até podem ter uma função de convívio entre os professores ou de contato com ideias e autores que marcam o campo docente. Mas não são formação continuada. A formação continuada se faz dentro da profissão, através de uma reflexão sobre a experiência e o trabalho docente, procurando as melhores soluções, os melhores caminhos, para a educação dos nossos alunos. Como é que trabalhamos? O que fazemos bem? Onde estão as nossas dificuldades? Como superá-las? O que precisamos fazer diferente? Como aprender com os outros? É nesta interrogação e no diálogo com nossos colegas que podemos encontrar uma formação continuada baseada na cooperação. Na cooperação e na criação, isto é, numa reflexão e pesquisa sobre o trabalho docente.

Como descreveria a terceira grande revolução da Humanidade?

Michel Serres fala do digital como a terceira revolução na história da Humanidade. A primeira foi a escrita. A segunda, o livro. A terceira, o digital. O que interessa não é a tecnologia pela tecnologia, mas as mudanças que o digital provoca na forma como as crianças pensam, como usam o cérebro, como acessam o conhecimento, como se relacionam e como se comunicam. Estas mudanças trazem uma verdadeira revolução na aprendizagem e, obviamente, na escola.

Qual é o potencial das tecnologias na educação?

Há dois temas que atravessam o imaginário educativo há muitos e muitos anos. Por um lado, a autonomia dos educandos, isto é, a possibilidade de cada aluno acessar o conhecimento de forma autônoma e individualizada. Por outro lado, a importância de ligar a escola ao seu exterior, de investir o conjunto das possibilidades educativas que existem numa determinada sociedade, dentro e fora da escola. É óbvio, para todos nós, que o uso inteligente das tecnologias pode facilitar, e muito, a concretização destes dois ideais.

Ela nos leva para um momento melhor ou pior?

Não sabemos. Isso depende de nós, e não das tecnologias. É essencial compreender a importância do conhecimento e, sobretudo, que os alunos têm que aprender as linguagens (científica, literária e artística) que lhes permitam acessar o mundo, a todos os mundos que o digital nos abre. É possível que estejamos, pela primeira vez na história da escola, perante uma “revolução de baixo”. Até hoje, as mudanças foram sempre pensadas a partir “de cima”, pelos reformadores, pelos políticos, pelos pedagogos. Agora, a revolução se impõe “de baixo”, pela forma como as crianças pensam e acedem ao conhecimento. Elas estão nos obrigando a mudar as escolas e a educação.

De que forma a educação mudará nessa nova era?

Deixe-me falar dos quatro grandes princípios da Educação Nova, que influenciaram todo o pensamento educativo ao longo do século XX. (1) A diferenciação pedagógica, isto é, a ideia de que a escola deve ser construída à medida de cada aluno, favorecendo percursos e ritmos próprios de aprendizagem, em vez de darmos a mesma escola a todos os alunos; (2) A escola do trabalho, não no sentido da formação profissional, mas na perspectiva de uma escola onde alunos e professores trabalham em conjunto na construção dos processos de aprendizagem; (3) A pedagogia do diálogo, do encontro, da relação entre alunos, entre alunos e professores, e até entre o que está dentro e o que está fora da escola, a ideia de que ao valorizarmos a comunicação damos um sentido às aprendizagens; (4) A lógica da descoberta, da procura, da pesquisa, a ideia de que devemos despertar a curiosidade dos alunos para que busquem o conhecimento, em vez de lhes servirmos as matérias de forma passiva, sem a sua participação e envolvimento. Quando pensamos nesses quatro princípios, repetidos exaustivamente ao longo do século XX, não podemos deixar de reconhecer que eles ficaram largamente por cumprir nas nossas escolas.

Por quê?

Porque apesar da vontade de muitos educadores, a estrutura física e organizacional das nossas escolas não permitia nem a diferenciação, nem o trabalho conjunto, nem o diálogo, nem a descoberta. Muito pelo contrário. A organização da sala de aula, do mobiliário, da estrutura do espaço e do tempo, impedia a concretização destes quatro princípios. Se formos otimistas, podemos admitir que as tecnologias, e tudo o que nelas reorganiza os espaços e as formas de relação com o conhecimento, nos permitem imaginar um outro espaço educativo, mais diverso, mais aberto, com lugares para a individualização, para o trabalho conjunto, para o diálogo e para a pesquisa. É em torno desses quatro pilares, definidos por quatro C’s, que podemos imaginar o que serão os ambientes das escolas do “futuro presente”.

Quais são os quatros C’s?

(1) Caminhos personalizados. Em vez da escola uniforme e homogênea, normalizada, temos de buscar percursos individualizados, a diferenciação pedagógica de que falamos há tanto tempo, e as tecnologias podem ajudar-nos nesta busca; (2) Cooperação. O desenvolvimento de formas de cooperação e de trabalho conjunto, no estudo de grandes problemas e temas de convergência, e não apenas em torno das disciplinas, permitem-nos construir uma pedagogia do trabalho que as novas tecnologias tornam mais fácil; (3) Comunicação. A aposta em dinâmicas de comunicação, fortemente potenciadas pelas novas tecnologias, é central para uma pedagogia ancorada em interações e relações, em formas de expressão e de comunicação que dão sentido às aprendizagens escolares; (4) Criação. A pedagogia tem que se inspirar cada vez mais na ciência, na ideia da procura, da pesquisa, da descoberta, tem que compreender que as aprendizagens assentam numa lógica de estudo que as tecnologias favorecem, que é importante colocar os alunos em situação de “criarem” conhecimento, não se limitando a um “consumo” passivo dos ensinamentos do professor.

No Brasil, há uma discussão no Legislativo sobre um projeto chamado “Escola sem partido”. O grupo de deputados quer proibir que haja “doutrinação ideológica” nas escolas. Os críticos afirmam que há censura. Como o senhor observa essa proposta?

É uma proposta absurda e sem sentido. Volta e meia, surgem propostas deste tipo. Felizmente, costumam desaparecer rapidamente. É estranho que surjam neste ano de 2016, quando se celebra o centenário dessa obra notável de John Dewey, “Democracia e Educação”, que há cem anos já disse tudo o que há para dizer sobre este assunto. Os professores têm a obrigação de apresentar as distintas visões do mundo às crianças, sobretudo as que assentam na ciência e na justiça. O professor não pode fazer tábua rasa das suas posições, mas deve colocá-las a serviço de uma exigência de conhecimento e de rigor. O trabalho do professor é abrir caminho para os alunos, para que eles formem a sua própria visão do mundo. A escola deve apresentar o mundo, todos os mundos, às crianças. Não deve impor uma visão, mas apresentar todas as visões. Para que a criança se faça adulta, pela razão e pela tolerância. Para que a criança possa ir escolhendo seus caminhos. Com liberdade. Quando a perdemos, perdemos a escola.

* Do “Extra”

 

 




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