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Publicado em 13 de novembro de 2014 | 7 minutos de leitura

Acadêmicos atacam “doutrinação” do Enem

Um conjunto de questões da prova de Ciências Humanas do último Exame Nacional de Ensino Médio (Enem 2014) abriu um debate entre acadêmicos sobre o “direcionamento ideológico” e a “doutrinação” dos estudantes por meio do teste.

O sociólogo Demétrio Magnoli, que propôs a discussão, disse considerar as respostas tidas como corretas a algumas perguntas sintomáticas do antiamericanismo, do “ódio” à imprensa e das políticas racialistas “característicos” dos governos da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pelo menos seis questões trariam esses vieses, segundo Magnoli e outros especialistas ouvidos pelo GLOBO. Mas há também quem defenda o tom da prova e relembre trechos com matiz similar já nas primeiras edições do exame, como o de 1998, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Magnoli cita a questão em que um texto do filósofo Marcos Nobre versa sobre política e conservadorismo brasileiros. Pelo gabarito divulgado ontem pelo Ministério da Educação (MEC), a resposta certa é: “A característica do sistema político brasileiro (…) obtém sua legitimidade da sustentação ideológica das desigualdades sociais”.

– O que há de fundo nessa questão é que é preciso remoldar a sociedade, o que seria feito pelo poder público, a partir de um combate das ideologias difundidas pelos meios de comunicação – defende Magnoli. – O que está por trás é que existe uma conspiração para difundir uma certa visão de mundo. O que está aí é o núcleo de controle da mídia. Todas as edições do Enem vão nessa linha.

Num artigo publicado na última segunda-feira no GLOBO, o sociólogo criticou questões referentes à Comissão Nacional da Verdade e ao Golpe de 1964, que transmitiram a ideia de que “a imprensa é má; o governo é bom”. Em relação às políticas racialistas, Magnoli fez ressalvas sobre os enunciados referentes à Frente Negra Brasileira e a um parecer do Conselho Nacional de Educação que instituiu o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas.

Professora de História do tradicional Colégio Sacré-Coeur, em Copacabana, na Zona Sul do Rio, Alice da Costa concorda com o sociólogo e criticou o que chamou de “caráter catequizante” das questões de Ciências Humanas.

– A prova apresentou questões de cunho ideológico, como um gesto de catequese ideológica, pelo qual os candidatos seriam forçados a se curvar à doutrina política do governo, repetindo exaustivamente sua ideologia sob pena de ficar excluído do ensino superior – afirma. – Essas questões que abordam políticas sociais adestram o candidato. De alguma forma, pretendem rebater e criticar os governos neoliberais do passado.

‘NÃO É DE HOJE’, DIZ PESQUIDOR

Doutor em Ciência Política e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro, Simon Schwartzman elogia a análise de Magnoli e ressaltou que a crítica se estende a edições anteriores do Enem.

– O texto do Demétrio é excelente, mas não surpreendente, por que não é de hoje que o Enem inclui questões que supostamente avaliariam o pensamento crítico, mas, na realidade, só avaliam o politicamente correto na visão de seus autores – opina Schwartzman.

No Enem 2012, a polêmica girou em torno da prova de Linguagens. Como O GLOBO noticiou à época, pelo menos oito questões mostravam preocupação excessiva em defender o uso oral e coloquial da língua em detrimento da norma culta. No mesmo ano, candidatos receberam a nota máxima em redação apresentando textos com erros grosseiros como “trousse”, “enchergar” e “rasoavel”, além de desvios graves de concordância. Após a revelação do GLOBO, o MEC tornou os critérios de correção mais rigorosos. Na edição do fim de semana, havia duas questões sobre variação linguística. O professor Claudio Cezar Henriques, titular do Instituto de Letras da Uerj, critica esse tipo de abordagem:

– A equipe que elabora a prova de Linguagens é de sociolinguística, trabalha com variação linguística, não é de Português. A prova tem que usar textos e questões que envolvam a esfera acadêmica e a linguagem padrão contemporânea. Mas, às vezes, o texto traz no conteúdo uma ideologia de interesse dos partidos políticos que comandam a banca do Enem.

É ‘VOZ ÀS MINORIAS’, DIZ PROFESSOR

Diretor pedagógico do curso Eleva Educação, o professor de História Cesar Menezes discorda dos críticos. Para ele, as perguntas não têm cunho ideologizante, mas sim um viés marcado pela alteridade, dando voz a minorias. Menezes lembra, aliás, que essa sempre foi a marca do Enem, desde a sua criação, em 1998.

Para efeito comparativo, Menezes cita questões da primeira edição do Enem, em 1998, que também poderiam ser tidas por doutrinárias. Uma delas, sobre os avanços políticos e sociais dos países vizinhos na América do Sul, trazia como resposta correta “A maioria dos países latino-americanos tem se envolvido, nos últimos anos, em processos de formação socioeconômicos caracterizados por: democratização e oferecimento de algumas oportunidades de crescimento econômico”.

Em outra, também de 1998, aparecia o depoimento de uma integrante do MST, e a resposta correta era “A terra é para quem trabalha nela, e não para quem a acumula como bem material”.

– Alguém acusou o MEC de defender o bolivarianismo? Ou algum aluno, ao fazer a prova, passou a defender a reforma agrária? – indaga Menezes.

Márcio Branco, professor de História das redes Pensi e QG do Enem, lembra que centenas de professores país afora enviam questões para o Inep, organizador da prova. Para ele, se há no exame uma tendência de valorização da discussão étnica, essa é uma vontade coletiva de diminuir “o espírito eurocêntrico que nos rege”:

– O que está em jogo não é inventar uma discussão racial, pois ela sempre esteve presente, mas colocá-la no prisma de valorização de nossas raízes africanas. Daí à proposição de que a prova é maniqueísta e dirigida pela plutocracia do Planalto há uma distância substancial. Ver a prova de sábado como ideológica e manipuladora nada mais é do que pura ideologia.

Procurados, o MEC e o Inep não se manifestaram.

  Fonte: O Globo  – 13/11/2014




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