Um conjunto de questões da prova de Ciências Humanas do último Exame Nacional de Ensino Médio (Enem 2014) abriu um debate entre acadêmicos sobre o “direcionamento ideológico” e a “doutrinação” dos estudantes por meio do teste.
O sociólogo Demétrio Magnoli, que propôs a discussão, disse considerar as respostas tidas como corretas a algumas perguntas sintomáticas do antiamericanismo, do “ódio” à imprensa e das políticas racialistas “característicos” dos governos da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pelo menos seis questões trariam esses vieses, segundo Magnoli e outros especialistas ouvidos pelo GLOBO. Mas há também quem defenda o tom da prova e relembre trechos com matiz similar já nas primeiras edições do exame, como o de 1998, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Magnoli cita a questão em que um texto do filósofo Marcos Nobre versa sobre política e conservadorismo brasileiros. Pelo gabarito divulgado ontem pelo Ministério da Educação (MEC), a resposta certa é: “A característica do sistema político brasileiro (…) obtém sua legitimidade da sustentação ideológica das desigualdades sociais”.
– O que há de fundo nessa questão é que é preciso remoldar a sociedade, o que seria feito pelo poder público, a partir de um combate das ideologias difundidas pelos meios de comunicação – defende Magnoli. – O que está por trás é que existe uma conspiração para difundir uma certa visão de mundo. O que está aí é o núcleo de controle da mídia. Todas as edições do Enem vão nessa linha.
Num artigo publicado na última segunda-feira no GLOBO, o sociólogo criticou questões referentes à Comissão Nacional da Verdade e ao Golpe de 1964, que transmitiram a ideia de que “a imprensa é má; o governo é bom”. Em relação às políticas racialistas, Magnoli fez ressalvas sobre os enunciados referentes à Frente Negra Brasileira e a um parecer do Conselho Nacional de Educação que instituiu o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas.
Professora de História do tradicional Colégio Sacré-Coeur, em Copacabana, na Zona Sul do Rio, Alice da Costa concorda com o sociólogo e criticou o que chamou de “caráter catequizante” das questões de Ciências Humanas.
– A prova apresentou questões de cunho ideológico, como um gesto de catequese ideológica, pelo qual os candidatos seriam forçados a se curvar à doutrina política do governo, repetindo exaustivamente sua ideologia sob pena de ficar excluído do ensino superior – afirma. – Essas questões que abordam políticas sociais adestram o candidato. De alguma forma, pretendem rebater e criticar os governos neoliberais do passado.
‘NÃO É DE HOJE’, DIZ PESQUIDOR
Doutor em Ciência Política e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro, Simon Schwartzman elogia a análise de Magnoli e ressaltou que a crítica se estende a edições anteriores do Enem.
– O texto do Demétrio é excelente, mas não surpreendente, por que não é de hoje que o Enem inclui questões que supostamente avaliariam o pensamento crítico, mas, na realidade, só avaliam o politicamente correto na visão de seus autores – opina Schwartzman.
No Enem 2012, a polêmica girou em torno da prova de Linguagens. Como O GLOBO noticiou à época, pelo menos oito questões mostravam preocupação excessiva em defender o uso oral e coloquial da língua em detrimento da norma culta. No mesmo ano, candidatos receberam a nota máxima em redação apresentando textos com erros grosseiros como “trousse”, “enchergar” e “rasoavel”, além de desvios graves de concordância. Após a revelação do GLOBO, o MEC tornou os critérios de correção mais rigorosos. Na edição do fim de semana, havia duas questões sobre variação linguística. O professor Claudio Cezar Henriques, titular do Instituto de Letras da Uerj, critica esse tipo de abordagem:
– A equipe que elabora a prova de Linguagens é de sociolinguística, trabalha com variação linguística, não é de Português. A prova tem que usar textos e questões que envolvam a esfera acadêmica e a linguagem padrão contemporânea. Mas, às vezes, o texto traz no conteúdo uma ideologia de interesse dos partidos políticos que comandam a banca do Enem.
É ‘VOZ ÀS MINORIAS’, DIZ PROFESSOR
Diretor pedagógico do curso Eleva Educação, o professor de História Cesar Menezes discorda dos críticos. Para ele, as perguntas não têm cunho ideologizante, mas sim um viés marcado pela alteridade, dando voz a minorias. Menezes lembra, aliás, que essa sempre foi a marca do Enem, desde a sua criação, em 1998.
Para efeito comparativo, Menezes cita questões da primeira edição do Enem, em 1998, que também poderiam ser tidas por doutrinárias. Uma delas, sobre os avanços políticos e sociais dos países vizinhos na América do Sul, trazia como resposta correta “A maioria dos países latino-americanos tem se envolvido, nos últimos anos, em processos de formação socioeconômicos caracterizados por: democratização e oferecimento de algumas oportunidades de crescimento econômico”.
Em outra, também de 1998, aparecia o depoimento de uma integrante do MST, e a resposta correta era “A terra é para quem trabalha nela, e não para quem a acumula como bem material”.
– Alguém acusou o MEC de defender o bolivarianismo? Ou algum aluno, ao fazer a prova, passou a defender a reforma agrária? – indaga Menezes.
Márcio Branco, professor de História das redes Pensi e QG do Enem, lembra que centenas de professores país afora enviam questões para o Inep, organizador da prova. Para ele, se há no exame uma tendência de valorização da discussão étnica, essa é uma vontade coletiva de diminuir “o espírito eurocêntrico que nos rege”:
– O que está em jogo não é inventar uma discussão racial, pois ela sempre esteve presente, mas colocá-la no prisma de valorização de nossas raízes africanas. Daí à proposição de que a prova é maniqueísta e dirigida pela plutocracia do Planalto há uma distância substancial. Ver a prova de sábado como ideológica e manipuladora nada mais é do que pura ideologia.
Procurados, o MEC e o Inep não se manifestaram.