Decifrar contraindicações de remédios é uma tarefa tão difícil que o consultor de vendas Sérgio Brant costuma jogar as bulas fora e perguntar direto ao médico. E ele não está sozinho. Quase dois terços dos brasileiros têm só conhecimentos básicos ou ausentes sobre a ciência que envolve situações cotidianas, como ler rótulos nutricionais, estimar o consumo de energia de eletrodomésticos ou interpretar os dados das bulas.
Isso é o que mostra o Índice de Letramento Científico, que calcula a habilidade das pessoas de aplicar conhecimentos científicos básicos em atividades rotineiras. A medição inédita foi desenvolvida pela Abramundo, empresa que produz materiais de Educação em ciências, em parceria como Ibope, o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa.
Foram ouvidas 2.002 pessoas, entre 15 e 40 anos, nas nove principais Regiões Metropolitanas do País. Só 5% foram considerados proficientes, com domínio de conceitos e termos mais complexos, além da capacidade de interpretar fenômenos. “A linguagem das bulas é complicada, com muitos nomes científicos”, diz Brant, de 67 anos, que toma medicamentos para diabetes e hipertensão. “Preciso reler para entender”, confessa. “Ou então jogo a bula no lixo e pergunto ao médico.” Para evitar distorções nos resultados, pelas dificuldades de interpretação de texto, participou do estudo apenas quem tinha mais de quatro anos de estudo.
Os entrevistados responderam a perguntas e declararam as próprias habilidades. Isso levou a uma disparidade curiosa: o desempenho nos testes revela dificuldades bem maiores do que as admitidas. Segundo o levantamento, o nível de Escolaridade maior não significa necessariamente intimidade com as ciências.Dos entrevistados com curso superior, 41% tinham competência ausente ou elementar.
A proporção de pessoas nesse grupo salta para 66% entre aqueles com Ensino médio completo e chega a 79% para quem só terminou o fundamental. “O Ensino médio não fez tanta diferença”, analisa o presidente da Abramundo, Ricardo Uzal.“Parece que o conteúdo mais fixado é o dos primeiros anos na Escola”, afirma.
Ciência na prática. Na opinião dos coordenadores do estudo,a competência alta em conhecimentos científicos práticos deixa as pessoas com maior senso crítico no consumo, na preservação ambiental e na saúde. “No supermercado, sempre leio os rótulos dos alimentos. E me preocupo coma quantidade de calorias, de gordura”, diz a estudante de Arquitetura Romila Rocha, de 18 anos, que nega dificuldades nesse campo. “Quando meus pais têm problemas desse tipo, eles correm até mim para pedir ajuda”, diz a jovem,que atribui seu desembaraço científico às recordações do colégio.“Era boa em Física,Química e Biologia”, lembra.
Mais tempo longe da sala de aula, Brant garante que seu aprendizado de ciências foi no trabalho. “O que sei foi por experiência prática, no contato com a indústria”, afirma ele, que já atuou no comércio de suplementos alimentares. O mercado de trabalho,destaca o estudo, é justamente a área em que o traquejo científico pode render mais frutos. “Só quem está no grupo dos 5% (proficientes) consegue questionar e inovar”, explica Ricardo Uzal. Entre os entrevistados com cargos gerenciais só 12% eram proficientes. No grupo de profissionais liberais, empresários, comerciantes ou proprietários rurais, o total foi de 15%.
Escolas precisam conectar conteúdo e realidade
Os tropeços nas ciências dão pistas sobre dificuldades de Professores em conectar os conteúdos à realidade dos Alunos. “A Educação científica é apartada do mundo real”, avalia o físico e Educador da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Carlos Menezes. “Isso começou a mudar só nos últimos anos”, diz ele, que ajudou na elaboração dos questionários da pesquisa. Para a especialista em Educação Científica da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Alice Helena Pierson, a responsabilidade não é só da Escola. “A população adulta, em geral, não é estimulada a se posicionar em debates técnicos ou científicos.”
Também falta mais interesse pelo tema: 39% não gostam de estudar ciências ou ler texto técnico. Outro ponto preocupante, na opinião de Alice Helena, é a diferença entre resultados dos testes e da autodeclaração. “Se a pessoa acha que sabe, não tem noção das limitações e deixa de buscar ajuda”, diz.
Fonte: O Estado de S. Paulo (SP) – 16/06/2014