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Publicado em 27 de maio de 2014 | 13 minutos de leitura

O tédio infantil

 A apatia demonstrada por algumas crianças em sala de aula pode ser sinal do tédio infantil. Psicóloga, formada pela USP e mestre em Psicologia Escolar, Clarice Kunsch analisou o problema em sua tese de mestrado e concluiu que é preciso dar às crianças um tempo livre para que possam desenvolver sua criatividade, autonomia e não fiquem entediadas no meio de agendas super lotadas de afazeres.

O tema da pesquisa nasceu das observações empíricas da especialista, que é também professora de Educação Infantil. “Percebi as crianças apáticas e desmotivadas”, comenta Clarice Kunsch.

A pesquisa foi feita com crianças entre 5 e 7 anos, pais e professores de uma escola particular de São Paulo, e o resultado, além de apontar os motivos do tédio infantil, alerta para a importância do brincar livre. Nesta entrevista, a educadora fala sobre a pesquisa.

O que a levou a estudar o tédio infantil?

Clarice Kunsch — Em minha experiência em sala de aula de educação infantil, percebi crianças apáticas, desmotivadas. Por serem crianças com boas condições de saúde, bem favorecidas economicamente, procurei entender de onde poderiam estar vindo a apatia e o desinteresse. Minha primeira hipótese foi o consumismo, pois acreditava que o excesso de bens estaria causando o desinteresse geral pelas coisas. Ao longo da pesquisa, fui percebendo que não era somente o consumo de bens, mas a maneira como a vida é consumida, isto é, quais são as escolhas feitas para a vida da criança, como a vida desta criança é estabelecida.

Quais as principais conclusões do trabalho?

O estudo levantou aspectos importantes para a vivência do tédio em crianças: agendas cheias de atividades extracurriculares, presença constante de um adulto (pais, funcionários, professores) com o intuito de orientar as ações das crianças e uso excessivo de equipamentos eletrônicos. Vemos que as crianças ficam na maior parte do tempo institucionalizadas, momentos em que ficam sob orientação de um adulto determinando o que devem fazer. Por mais que elas estejam em contato com outras crianças, seguem uma programação – e isso é diferente do brincar livre. Uma criança deve sempre ter segurança e integridade garantidas por um adulto, o que não significa que o adulto deva estar ativamente presente. A criança precisa saber lidar com os momentos em que ninguém pode brincar com ela ou dar atenção. Acontece que, cada vez mais acostumada a ser orientada, a criança fica à espera da próxima ordem sobre o que fazer – até sobre do que brincar. Acredito que a criança deva ter condições de conseguir criar, inventar suas brincadeiras, arriscar-se em suas ideias, e, para isso, ajuda muito que ela tenha momentos de livre exploração do mundo, de contato com a natureza, de contato com outras crianças ou mesmo sozinha.

O excesso de atividades é inadequado?

Sim. Como apresentado na resposta anterior, o excesso de atividades é inadequado para a criança. Isso não quer dizer que ela não deve fazer atividade nenhuma fora da escola, mas devemos estar atentos a alguns pontos: a atividade é uma escolha dos pais, mas deve ser do interesse da criança; a atividade não deve ter como objetivo antecipar conteúdos ou forçar o aprendizado daquilo para o que a criança ainda não está pronta. As crianças se desenvolvem, vão conquistando graus diferentes de complexidade de suas habilidades, mas isso deve ser feito de maneira respeitosa. Ela deve ter o seu tempo respeitado, não deve haver pressa. Está cada vez mais comum a oferta de cursos que prometem sucesso no futuro. Se a criança for insistentemente forçada a aprender algo, provavelmente aprenderá, como tem sido feito com a alfabetização cada vez mais precoce, mas há alguma necessidade real disso? Certamente, sabemos que essa criança está deixando de brincar para cumprir essas tarefas. E, por mais que os cursos sejam lúdicos, os objetivos de cursos são claros (aprender inglês, matemática, etc.) e não podem equivaler ao brincar livre. No brincar livre, a criança se relaciona com outras crianças em relações cooperativas, isto é, ela contribui com suas ideias e lida com as ideias das outras crianças. É muito diferente de ser tutelada, orientada por um adulto, com o qual estabelece relações de coação (isto é, obedece ao que foi dito, pois respeita aquela pessoa, entende que os comandos daquele adulto é algo que deve ser seguido).

É melhor a criança realizar uma atividade na escola ou em casa? Qual a importância do ócio na formação infantil?

É importante que as crianças façam atividades fora da escola, pois, além de estimular e desenvolver outras áreas, é mais uma possibilidade de estar em contato com outras crianças. O problema está no excesso e no tipo de atividade que a criança realiza. As crianças já ficam cansadas do período que permanecem na escola, portanto, devem ter tempo para descansar à tarde e para brincar livremente. A atividade extraescolar deve ocupar uma pequena parte do seu dia e ser uma atividade que interesse à criança também, não só aos pais. O objetivo de fazer determinada atividade não deve antecipar conteú­dos ou tentar garantir um futuro promissor. Uma criança pequena não precisa frequentar escola bilíngue e curso de um terceiro idioma fora da escola, por exemplo. O ócio é muito importante para uma criança. São momentos em que pode ficar livre, tranquila e sem orientações. Nesses momentos, ela vai explorar o mundo conforme os seus interesses. A criança precisa de momentos de sossego, de descanso durante a sua rotina. Repare se a criança alega muito cansaço no final de semana: não necessariamente, é por preguiça, às vezes, é cansaço real de uma semana muito comprometida.

Devido à violência, as crianças estão cada vez mais presas. Ficam mais tempo em lugares fechados, como casa, escola. Além disso, as famílias são cada vez menores. Muitos casais optam por ter apenas um filho. Esse isolamento contribui para o tédio infantil?

Sem dúvida vivemos uma realidade diferente. As famílias estão cada vez menores: pai e mãe trabalham fora de casa, o que aumenta o poder aquisitivo da família, possibilitando escolhas diversas para a composição da rotina da criança. O grande desafio é conseguir parar para avaliar como essas escolhas são percebidas e vividas pela criança, pois estamos lidando com um ser humano com necessidades e interesses peculiares. Não necessariamente a criança vai gostar daquilo que foi projetado para ela.

A superproteção dos pais está atrapalhando as crianças?

Qualquer tipo de excesso não faz bem. Excesso de brinquedos, de eletrônicos, de atividades, entre outros, é prejudicial. A superproteção também não faz bem, porque atrapalha o desenvolvimento da autonomia da criança, pois se habitua a relações de coação, em que predomina o respeito unilateral, isto é, obedece aos seus pais e pouco questiona, assume muito pouco da própria vida. A superproteção acaba sendo uma maneira de evitar com que a criança enfrente as dificuldades do mundo e se posicione sempre de maneira passiva, à espera de comandos e de orientações.

Hoje, as crianças ingressam mais cedo na escola. Aos 4 anos de idade já devem estar matriculadas. Nesse espaço, têm suas brincadeiras direcionadas por professores e educadores. Esse ingresso antecipado atrapalha o desenvolvimento infantil?

Eu entendo o ingresso na escola ou na creche como um grande passo na vida de uma criança e de sua família. Muitas vezes, não é uma escolha, mas uma necessidade, e isso não deve ser visto como algo ruim, pode ser muito bom para a criança, pois passa a entrar em contato com outras crianças, a ser estimulada em diferentes aspectos (através de atividades musicais, artísticas, físicas, etc.), a aprender a se virar sozinha e conhece uma nova forma de autoridade além da dos seus familiares. Tudo isso é importantíssimo para o desenvolvimento. Em um grupo, ela deve aprender a se posicionar, enfrentar diferenças, emitir e confrontar sua opinião. Deve aprender a esperar a sua vez e a reagir espontaneamente, pois professores têm que dividir a atenção com várias outras crianças. Passa a se relacionar com regras diferentes daquelas que vivencia na sua casa.

Para sua pesquisa a Senhora também ouviu professores. O que chamou a atenção no discurso dos docentes? Eles sabem lidar com esse problema?

Os professores são atentos às dificuldades das crianças, preocupam-se e buscam a melhor maneira de ajudá-las. Acontece que estamos vivendo uma era de medicalização das crianças, buscam-se diagnósticos que expliquem os comportamentos. Eu questiono se realmente há tantas crianças que precisariam ser medicadas, acredito que essa deveria ser a mais remota opção. Devemos entender o contexto de vida de cada criança, ouvir sua opinião e conversar abertamente com seus pais para tentar entender quem é aquela criança e como está reagindo ao modo de vida estabelecido para ela. Devemos ter cuidado na busca de vilões (diagnósticos, televisão, antecedentes familiares) que justificariam os comportamentos da criança. Devemos olhar o todo, o contexto geral em que a criança se encontra. E, principalmente, respeitá-la como ser único e autêntico. Numa sala de aula, podemos pensar em variedades de propostas de ensino, tentar olhar para as necessidades diferentes de cada criança, porque jamais estamos com um grupo homogêneo, isso não existe. E buscar sempre o diálogo com as famílias e outros profissionais que lidam com a criança – podemos sempre contribuir se estivermos abertos a opiniões diferentes.

 Como os professores podem identificar o tédio infantil? Quais são os sinais?

Os professores precisam ficar atentos aos sinais de apatia, falta de interesse, falta de motivação. É quando a criança poderia fazer algo e não quer, não se motiva sozinha, tem dificuldades para se encantar, para fantasiar ou precisa constantemente que seja orientada. É comum ser confundido com depressão, ansiedade, déficit de atenção. O tédio não é um diagnóstico clínico, é como a criança está se sentindo, como está se relacionando com a vida. É preciso entender como a rotina da criança está estabelecida e verificar onde pode haver excessos. A partir disso, passa a ser importante conversar com os responsáveis pela criança para entender como é a vida da criança fora da escola, quais são as expectativas em cima dela, o quanto a criança se envolve e se responsabiliza por temas pertinentes à sua vida.

 Como os docentes podem contribuir para amenizar o problema? Como lidar com isso em sala?

Os professores são importantíssimos para as crianças, passam bastante tempo com elas e têm condições de conhecer cada uma individualmente e na sua relação com o grupo. Podem colaborar, principalmente, respeitando o tempo e as necessidades de cada criança. Precisam estar abertos para repensar sua prática conforme as inovações do mundo atual, que refletem diretamente nas crianças. Além disso, devem proporcionar diálogos abertos com as famílias e maior tempo para brincadeiras livres entre as crianças sem interferência de adultos, contato com a natureza, com histórias adequadas ao universo infantil, deixar que elas exerçam sua autonomia, mesmo que isso custe mais tempo. Sem dúvida, é de extrema importância evitar atividades que visem à antecipação de conteúdos.


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