Os trechos dedicados à sociologia no projeto da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), divulgado pelo governo federal em maio, exibem de saída duas virtudes: objetividade na definição das metas para a disciplina no ensino médio brasileiro e uso restrito do “academês”, o jargão tão presente em capítulos do documento como os dedicados ao ensino de arte.
Desde a sanção da lei 11.684, de 2008, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, sociologia e filosofia são disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio no país. Talvez seja o caso de perguntar por que o mesmo tratamento não é dispensado, por exemplo, à economia -tão capaz de, passe o clichê, “estimular o pensamento crítico” quanto as outras.
Seja como for, já que a sociologia faz parte do currículo, é bom que o documento do governo diga claramente do que trata a matéria e o que se espera que os alunos da 1ª à 3ª série do antigo segundo grau aprendam -em uma linguagem que os professores de todo o país possam compreender.
O projeto da BNCC se desincumbe bem dessa tarefa desde os parágrafos iniciais (embora, aqui e ali, não escape de termos à beira do lugar-comum, como “problematizar”).
“A presença da sociologia no ensino médio corresponde ao ensino compartilhado das tradições que compõem as ciências sociais, isto é, antropologia, ciência política e sociologia”, diz o texto do projeto da BNCC, na página 164.
A disciplina, prossegue o documento, “responde a duas ordens distintas de missão no ensino médio: de um lado, a de compartilhar teorias e conceitos consagrados pelas comunidades científicas dessas três tradições e, de outro, a de contribuir para estimular os estudantes a desenvolverem valores e atitudes compatíveis com a democracia, ao ensiná-los a estranhar e a desnaturalizar o senso comum”.
Mais adiante, o texto insiste na valorização do potencial da sociologia para “funcionar como ponte entre a vida escolar e a vida fora da escola e a sua condição de ciência voltada para a reflexão da vida em coletividade” (pág. 165).
Pede que se considerem os conhecimentos que os estudantes trazem do ensino fundamental, em matérias como história e geografia, e define sete tipos de competência que eles devem dominar ao final do curso -entre elas, “localizar indivíduos e grupos na estrutura social” e “formular perguntas sociológicas capazes de orientar a realização de pesquisas sobre aspectos da realidade brasileira e mundial” (pág. 634).
Por fim, os objetivos do curso estão organizados em três unidades curriculares, para permitir, segundo a BNCC, “uma progressão dos conhecimentos em sociologia que vá do mais simples ao mais complexo, do concreto ao abstrato” -o que parece não só correto como natural (além de contrastar com a “ordem cronológica inversa” que o documento propõe no ensino de literatura, com autores contemporâneos no começo do ensino médio e seiscentistas no final).
À semelhança do que ocorre com outras matérias, a BNCC não obriga à leitura de nenhum autor específico -nem mesmo “pais” da sociologia como disciplina acadêmica independente, como o francês Émile Durkheim (1858-1917).
O documento vê os autores clássicos como “possível recurso didático”, mas afirma que a principal tarefa da sociologia é abrir espaço para que os alunos “formulem novas perguntas à realidade em que vivem”.
Há, claro, o risco de que na sala de aula isso se converta em três anos de debates, com vago cheiro de sociologia, sobre “temas polêmicos” –mas, a rigor, nenhuma base curricular teria o poder de evitar aulas ruins.
Uma característica discutível do projeto é apresentar como fechadas ideias que estão, muitas vezes, sujeitas a intenso debate -por exemplo, “identificar a concepção de gênero como construção social”, que aparece na primeira das três unidades curriculares.
Esperamos que na prática as aulas sejam tão abertas a discussões quanto possível –e confiamos na capacidade dos alunos, que afinal não são uma “tabula rasa”, de “problematizar” o que for necessário.
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Calendário
26.jun.2014 – Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie proposta de base curricular em até dois anos
16.set.2015 – MEC apresenta a 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica
15.dez.2015 – Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública
3.mai.2016 – MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios
jun. a ago.2016 – Texto está sendo debatido nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto
ago a nov.2016 – Um comitê gestor vai revisar a base (ensinos infantil e fundamental) e debater o ensino médio
nov.2016 – O objetivo é ter a versão final até essa data (para infantil e fundamental), mas não há previsão de quando ela começa a valer
1ºsem.2017 – MEC deve definir a base curricular do ensino médio, após aprovação de projeto de lei no Congresso que prevê um novo formato para a etapa